Quantas pessoas transgênero você tem no seu círculo de amigos? Se você não é uma pessoa trans, talvez essa seja uma pergunta que te incomode. E, depois dela, é preciso ainda pensar: quantas artistas trans estão no seu radar ou tocando no seu fone de ouvido? Nos últimos anos vimos a ascensão e o sucesso mundial de brasileiras transgênero, como o fenômeno Linn da Quebrada, Pabllo Vittar, Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira, Glória Groove e Majur – para nos atermos apenas à música. Espaços políticos também têm sido ocupados. Destaco, por exemplo, a vereadora Léo Kret, na Bahia; e a deputada estadual Erica Malunguinho, em São Paulo, também criadora do espaço cultural Aparelha Luzia. Para chegar a um público amplo, essa movimentação demora. Mas ela está sendo feita e acolhendo artistas e profissionais que enfrentam cotidianamente o preconceito e a falta de oportunidades de trabalhar e de se expressar.
É nesse cenário que surgiu a primeira gravadora voltada para artistas trans no Brasil: a Trava Bizness, criada em 2018. O trabalho da Trava começou sendo mais complexo do que o de um selo, agregando uma estrutura que gravava, produzia, assessorava e lançava. No entanto, agora, no começo de 2020, a Trava está atuando como produtora e selo em parceria com outras gravadoras. Algumas de suas 21 artistas são Alice Guél, Marina Mathey e Natt Maat, que podem ser vistas no seu canal de YouTube. O fato da Trava Bizness ter nascido como uma gravadora voltada para artistas trans – e ser a primeira no país – demonstra o atraso que nossa sociedade se encontra com relação à diversidade de gênero, que precisa fortalecer o nicho para poder existir no mercado. Não fosse o preconceito e as portas fechadas para a população trans – sem falar na (falta das) políticas públicas -, estas artistas já poderiam estar despontando há mais tempo.
O nome por trás da Trava Bizness é Malka Julieta. Compositora, cantora e produtora há mais de 20 anos, Malka é um nome conhecido e respeitado na música paulistana. Ela acompanhou, por exemplo, o movimento de migração das festas eletrônicas dos clubes para as ruas e espaços mais agregadores e inclusivos, tanto para o público, quanto para a experimentação musical. Em uma breve entrevista com a artista, questionei como ela via essas transformações do espaço noturno de São Paulo: “Nem nossa existência enquanto corpo, nem nossa existência enquanto artista era mais permitida dentro dos clubes. Até hoje o clube continua sendo um lugar muito normativo para a música e para a florescer nova música. Ainda é algo muito pop e voltado para um certo tipo de público, a criação dessas festas foram para dar vazão à criatividade das pessoas em outros níveis de arte […] e hoje esses locais abarcam a maioria das mulheres que tocam”. Malka é residente da Mamba Negra e da Sangra Muta, festas seminais nesse sentido, além de, esporadicamente, tocar em outras festas do mesmo estilo.
Em janeiro deste ano de 2020, Malka lançou o single Meus Remédios na coletânea Desorden y Progreso vol.1, organizado pela plataforma Onda Mundial, surgida em 2019 no México com a proposta de agregar a produção musical latino-americana. Com a Onda Mundial, Malka tocou no último mês de fevereiro no festival internacional Bahidorá, ao lado da brasileira Teto Preto e DJ Tudo e nomes internacionais como Erykah Badu, Sister Nancy, Dengue Dengue Dengue e Analog Africa. Também nessa viagem ela começou uma residência musical e produções com dois artistas de Los Angeles, Channel Tres e Star Ah Me Ha Su.
Malka em fotografia de Nay Jinkss
Os singles já lançados por Malka, como Meus Remédios, Pimenta (Malka, MC DELLACROIX) e Olhos Negros, falam da realidade. O primeiro, com uma base eletrônica dançante e bem acabada, perfeita para a pista, é quase um recado para si mesma: “olha esse mundo que loucura / e os meus remédios acabaram / olha esse mundo que perigo / e os meus remédios acabaram”. Já Pimenta e Olhos Negros, ambos lançados em 2018, trazem um som mais melodioso – ainda que com forte base rítmica eletrônica – e letras mais narrativas. Na primeira, as agruras cotidianas do preconceito são narradas e a letra fala sobre violência e invisibilização, mas sobretudo de resistência: “Na escola eu levava borracha / borracha hoje eu levo de graça / apagaram nossa memória / já assinaram nossa história / eu luto, eu luto, eu tô de luto”. Já a segunda tem um clima de balada garantida pelo piano e nos leva a um ambiente de romance. Em 2019, Malka foi uma das convidadas pelo coletivo SÊLA a compor uma coletânea feminina e gravou o single Noite escura, trava adentro, que é uma viagem por uma noitada que queria ser evitada (“Eu sempre digo que não quero sair / e sempre digo que não vou me apaixonar / estou acostumada a mentir pra mim mesma / claro que eu vou sair, alimentar meu coração”) mas que acaba em pegação no banheiro da noite: quem nunca?
Além dos singles autorais, das parcerias, dos DJs sets e de seus lives em festas e festivais, Malka também tem acompanhado Mc Tha na turnê de seu primeiro disco, o super bem recebido Rito de Passá. O disco tem rodado por diversas cidades do Brasil, sendo tocado em teatros, clubes e estádios, o que, segundo Malka, tem lhe dado uma experiência única de palco.
Para completar a agenda criativa da artista e incrementar o casting da Trava Bizness, Malka co-produziu o disco de estreia da artista Ynaiê e têm produzido a cantora paraense Ayaní. A primeira já tem até data de lançamento para o disco: 2 de abril, no Centro Cultural São Paulo. A segunda ainda está em fase de produção e de realização do clipe.
E para encerrar essa breve viagem estética e musical, fica a pergunta: de quantos dos artistas citados o caro leitor já tinha ouvido falar?
Pérola Mathias é crítica e socióloga.