Tem gente que recebe Deus quando filma, tem gente que filma procurando Deus. Em trocadilho com o que diz o cancioneiro popular, tomo o dito por empréstimo para me ater a uma premissa teológica que creio ser a mais adequada para acomodar o trabalho cinematográfico de Alexandre Guena, uma espécie de sacerdote, de devoto em constante diálogo e reverência com as suas entidades visuais. Guena se movimenta como um monge, a passos lentos, quase arrastados em seu All Star surrado; parece nunca ter pressa. Veste-se com o recato das mangas que lhe ultrapassam os punhos, em permanente desafio ao escaldante calor de Salvador, sua cidade natal. As largas calças, celebradas por outros sacerdotes da sua querida e festejada Seattle da década de 90, parecem nunca lhe deixar o corpo. A fala lenta também revela comedimento no pensar e no agir, ou talvez alguma preguiça justificada. Quando com amigos na mesa de um bar, Guena se penitencia e se deixa exorcizar fácil pelos demônios que o atormentam, sendo imprevisível o que daí pode decorrer. E quando se posta atrás de uma câmera há apenas êxtase, adoração e requinte devocional. Vê-lo em ação pode causar a falsa impressão do improviso, mas o que ocorre é que cada passo já se encontra milimetricamente calculado, previamente estudado, o que não significa, por outro lado, que a velocidade com que a sua percepção opera não possa capturar o acontecimento inusitado no calor do set de filmagem. Mas a epifania, essa coisa rara, só se dá finalmente na montagem, no seu refinado faro de montador, quando decompõe os fragmentos obtidos pela sua objetiva e nos descortina um estado de graça. O cinema de Alexandre Guena é litúrgico, um cinema que ele vem chamando de Cinema Sádico.
Já foi dito que escrever sobre os nossos contemporâneos é tarefa ingrata, senão desonesta. A dificuldade advém da pouca precisão que a aproximação temporal e, em nosso caso, também espacial, impõem. Há sempre a chance de cometermos desatinos, sobretudo se nos arvoramos na ineficaz tarefa de dar conta de uma ideia geral da obra a que nos reportamos do começo ao fim. O retrato aqui exposto, algo como uma espécie de instantâneo obtido da última folha de uma Polaroid, carece assumidamente de precisão, apenas põe-se no movimento daquilo que na obra de Guena nos instiga e deixa de lado o que nela não nos põe em desarrollo.
Em Esc4escape (2013), o personagem interpretado por Bertrand Duarte lê uma longa citação do “Terrorismo poético” em que Hakim Bey (grafado nos créditos do filme como Hakim “Rey”) descreve o Amor Louco como aquele amor que “admira o tropicalismo, a sabotagem [e] a break dance”. A presença de Bertrand e o trecho escolhido podem fornecer alguma pista por onde os filmes de Guena se movem. O ator é um dos símbolos do Cinema Marginal praticado na Bahia do final dos anos 80. Protagonizou o já clássico Superoutro (1989), de Edgard Navarro, que, por sua vez, foi professor de Guena na faculdade de cinema que cursou. Sem dúvidas, estão entranhadas nessas referências algumas convicções teóricas que repercutem no trabalho de Alexandre Guena. Estão lá, na sua produção, o rigor formal da fotografia de Andrea Tonacci, a escatologia de Navarro e as mulheres dominadoras e antropofágicas de Rogério Sganzerla, nas palavras de Guena “o maior de todos”. São características que comungam e mesmo se confundem com outro movimento de proporcional importância na cultura brasileira, o tropicalismo, citado no trecho de Hakim Bey em Esc4scape.
É preciso também assinalar a importância do cinema independente realizado nos EUA e daquilo que é exterior ao cinema na produção de Guena. O uso constante da ironia nos remete diretamente a autores como o diretor nova-iorquino John Waters (Pink Flamingos, 1972) e Russ Meyer (Faster Pussycat Kill Kill, 1965), passando pelo quadrinista Milo Manara e os surrealistas. De John Waters (assim como dos Marginais brasileiros), traz a irreverência anárquica do meio underground ao tratar temas recalcados culturalmente, bem como a estética camp, fartamente encontrada no cinema de Meyer; de Manara, o sensualismo pujante e cuidadosamente elaborado em seus textos e desenhos; e dos surrealistas, a estratégia de choque, ao deslocar temas inusitados e justapô-los, aparentemente, de maneira aleatória. É próprio da cinematografia de Guena o achado chistoso, sintético na maneira de reunir os fragmentos do cotidiano e produzir uma narrativa pouco interessada na reprodução naturalista. Raramente as ações são desenvolvidas. O que se vê são situações apresentadas e interrompidas a criar estranhamento no espectador. Aliás, diga-se, o estranhamento é o selo permanente daquilo que ele ergue nas telas.
É difícil se referir ao seu trabalho sem mencionar a sua trajetória como diretor de videoclipes. É daí que provém a maior parte de sua produção e também onde encontrou maior repercussão pública, embora ainda seja uma dimensão do seu trabalho que aguarde por uma devida apreciação crítica. Arlindo Machado identificou entre os diretores de videoclipe o problema (para ele grave) de ambicionarem um dia tornarem-se diretores de filmes de longa-metragem. Segundo o teórico das “imagens técnicas”, tal ambição escamoteia uma aversão mercantil sorrateiramente compactuada pelos próprios diretores de videoclipes que se deixam levar pela descrença no poder poético e mesmo econômico das novas formas audiovisuais. Até aqui, Guena não dispõe de nenhum filme finalizado no formato tradicional de longa-metragem. Não posso supor que por falta de desejo e, definitivamente, não é isso o que importa. A questão fundamental é que a sua obra audiovisual já dispõe de lastro suficientemente firme para nos dar o que pensar independentemente do formato que ela ocupe. Além dos clipes, sua produção compreende algo de videoarte e também filmes em curta-metragem que variam entre pílulas de 1min até produções de 25min.
A passagem entre os formatos guarda uma unidade, tanto no conteúdo como na forma, que marca a linguagem autoral de Guena dentro do seu Cinema Sádico. Em Óreo, curta-metragem de 2016, Guena retoma o flerte com o gênero de terror que havia celebrado no clipe Memórias, da cantora Pitty – co-dirigido por Ricardo Spencer, cuja produção merece uma reflexão mais detida – ainda no ano de 2006. Se a escolha pela exploração visual da camada mais superficial da canção de Pitty para a feitura do clipe, de forte apelo comercial, deixa pouco para a nossa imaginação, o mesmo não se pode dizer de Óreo. A um país que parece querer ressuscitar a “Revolução da Anta” cinematográfica, Guena responde ao fazer a sua personagem impor um terror psicótico a uma senhorinha bem comportada enquanto deglute biscoitos importados na sala de estar do seu apartamento pequeno-burguês. Ainda no mesmo tom crítico a qualquer vaga noção nacionalista, Guena dirigiu 1964 em 2010, ou seja, três anos antes da onda ufanista que se reacendeu no Brasil a partir de 2013.
Dotado de forte carga erótica e violência, 1964 ecoa as melhores obsessões de um Jean Genet em Un Chant d’Amour (1950). De saída, uma cartela inicial ironiza a chamada “revolução de 64” como fruto de uma promessa quimérica, um futuro que nunca se realizou a não ser no campo na sordidez. Enquanto o poder das instituições nacionais é corroído no mundo externo, uma família incomum experimenta a desintegração progressiva dos signos mais tradicionais vividos na vida doméstica, subvertendo, sobretudo, a ordem patriarcal. Numa casa antiga, fincada no Centro Histórico da cidade de Salvador, a personagem de Laise Leal, uma mamãe-sádica invulgar e lasciva rega as plantas, acolhe um pária em sua janela e ora de joelhos diante de um vaso sanitário a suplicar pela ressurreição eterna da vida. Na sequência seguinte, dos seus pés divinizados, oferece ração a um Bubute (interpretado por Rodrigo Sputter) despersonalizado, brutalizado em sua animalidade canina. Outras cenas ainda emergem no filme, como quando o personagem vivido por Camilo Fróes tem a sua cabeleira raspada pelas mãos decididas de sua sádica opulenta; ou quando é surrado por Bubute por algum motivo aparentemente banal. Paralelo a isso, uma trama de perseguição, fuga e espionagem se desenvolve fragmentariamente e de maneira secundária pelo personagem vivido por Paolo Fraga, frequente parceiro de Guena. Uma cigana, cuja interpretação fica a cargo de Sophia Mídian, sela a alegoria que imiscui misticismo e política num encontro com os deserdados numa rua antiga e abandonada do Centro Histórico de Salvador. A montagem de 1964 parece prestes a ruir no desarranjo dos seus cortes bruscos até que, em tempo, a incorporamos num descompasso que estranhamente se harmoniza aos seus personagens desajustados.
Por quase todo o tempo, a banda sonora do curta-metragem é pontuada por sons metálicos, como a engrenagem de um barbeador, uma música eletrônica renitente e, o mais marcante, falas pautadas pelos imperativos da mamãe-sádica e os grunhidos dos seus filhos dóceis e fiéis. Quase nenhum discurso articulado, nenhum diálogo, nenhuma comunicação, apenas expressividade em estado bruto, o que insinua estarmos diante de animais exilados da linguagem instrumental e ordinária do mundo dos homens comuns, fugitivos da tragédia de babel a balbuciar algum tipo de conciliação com uma natureza surda, afinal, a única a que se dirigem os párias de Guena. É nesse único sentido que podemos falar de comunicação em 1964; eles não falam conosco, dão-nos as costas, celebram o corpo num hedonismo suplicante e repercutem uma liturgia.
Mas retornando a Esc4scape, nele se repete a história de deserdados à procura de alguma vibração no deserto que, afinal, é o mundo vivido pelos seus personagens. Dois casais em busca de evasão perambulam por uma cidade deserta a divagar sobre a vida, seus passados e suas quimeras. Entre cemitérios e restaurantes de luxo, subvertem os usos ordinários que são feitos de tais lugares. Ao invés de um espaço para enterrar os seus mortos, banqueteiam-se em piqueniques; no lugar de um almoço bem comportado no restaurante com a conta respeitosamente paga, regalam-se num banquete romano e aplicam um calote escancarado até que, por fim, naveguem tranquilos nas águas calmas da Baía de Todos os Santos. Em Esc4scape, estão os quadrinhos, a ironia ao jornalismo fácil e manipulado como verdade inconteste, a voz off como recurso de linguagem, tal como utilizada pelo melhor do cinema feito com precariedade técnica, a sabotagem e todo o amor louco recitado por Bertrand Duarte na sequência final do filme. A montagem fragmentada reitera o estranhamento já mencionado e, ao lado das aparições dos atores em lugares e ações inusitados, confundem aquilo que é da ordem do ficcional e do documento, sugerindo a realidade em confusão com um estado onírico em preto e branco.
O país dos filmes de Alexandre Guena é um Brasil por vezes macabro, apresentado em sua aterradora e prolongada infância. Seu cinema obriga-nos a emular as ações que se negam a se desenvolver e nos impõe uma espécie de emancipação involuntária, o que provavelmente guarda a sua maior força. O conjunto de referências e recursos que mobiliza tensiona um lugar que só o tempo nos dirá aonde poderá desaguar. Aguardemos a sua liturgia.
Rodrigo Araújo é cineasta e professor de filosofia do IFBA.